01 setembro 2009

Sobrevoando o céu silvestre

(homenagem a Walt Whitman)



Amanhã

vou ao rio

colher doces medronhos

para o meu namorado.

Amanhã

vou às carpas

e choverão labaredas nas águas.

Amanhã

sinceramente voarei

sobre a toalha vermelha

cruzada de ervas

entre as folhas eternas.

Amanhã

amá-lo-ei, naturalmente

embebido numa mistura de vinhos.

E na sua boca provarei

o sumo do amor, simples:

no beijo colherei o mel

e as gotas licorosas da primavera.

Amanhã

sobrevoaremos o campo de estrelas

e no verde perfumado de medronho

aspiraremos as fragrâncias do paraíso.

Amanhã

nos braços do céu silvestre

fluirão os néctares sanguíneos,

por inumeráveis estrelas-abelhas

jorrados nos favos da toalha.

E entrançados iremos

pelos jardins radiantes,

colhendo maçãs e delírios

nas bocas serpentinadas.

Amanhã

no rasto das colheitas do trigo

entraremos na eira do céu

para desfiar as searas

nas espigas ardentes do Verão.

Amanhã

nos caminhos de terra molhada,

à beira-rio

seguiremos o trilho dos juncos

além das veredas do leito,

em direcção ao Outono

sem o qual nada saberíamos,

embora amantes desta Natureza

mais pura que a água das almas

antes da invenção das máquinas.

Amanhã

amaremos todas as ervinhas

sobre a abismo da Terra onde

os nossos corpos caracóis tornados

serão calor etéreo, vida e morte

adoração de infernos e céus, repousados

no amor entre as estrelas do mar

e fenos e fardos, ceifados

pelas mãos da serenidade viçosa.

Amanhã

saída do ventre da vida, a Terra

conceberá montanhas de espanto

e, sem sátiras nem tragédias vãs,

enfim seremos criaturas divinas,

livres de preceitos e máculas,

abolidas as fálicas regras

contra a humanidade impostas

pelas religiões anti-panteístas.

Amanhã

voltará a ser Arte a Mãe do Amor

florescente na Beleza da Terra inculta,

simples e sublimemente imaculada,

terna e flamante como a Lua-cheia.

Então seremos um só corpo

liberto dos espinhos das falsas virtudes,

um corpo absoluto e revolucionário

jamais amesquinhado por falsos deuses.

Amanhã

beberemos o vinho mais doce

e a sabedoria brotará das rosas

em mãos-cheias de frescos aromas

e amores iluminados no prazer de existir

religiosamente como Natureza.

Amanhã

muito além das sombras tenebrosas

deste éden gotejante de ácidos prazeres,

de paixões funestas e morte sem fim,

prosseguiremos a nossa caminhada,

bebendo e compartilhando a vida

das novas folhagens irradiadas

por colossais lençóis de frenesins floridos,

enquanto na idolatria se humilha o amor

e a sinceridade das crianças.



Filhos da miséria na terra das ilusões:

_não espereis ver seguido esse exército vago!:

pelo contrário, sereis içados

daí, onde definhais perdidos

nos enredos dessa pegajosa prisão, pois

por entre oceanos de tristeza e dores

não florescerão adorações:

todos os corpos são vasos efémeros,

jamais será eterna a obediência

ao escárnio da insanidade dita humana.



Amanhã

vou ao rio.

Amá-lo-ei, naturalmente.



Dez. 96

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