31 julho 2021

No marasmo, à espera de nada

  

Estou farta de estar aqui

a fazer nada, nada!

Assim, nada se esvai de mim

para tudo o que nada é.

 

Aqui fico sentada no tédio,

à minha frente jaz um monte

de jornais aborrecidos

_dizem nada, nada!_

e um cinzeiro cheio que despejei há pouco

no cinzeiro-mor deste mar de soletradores

de frases vazias, infinitamente

reproduzidas nas ondas de tudo.

 

E aqui fico sentada

defronte da parede defronte,

olhando folhas dependuradas

e pensando nas árvores abatidas

só para encher vitrinas de papéis,

para que nada seja lido.

 

Já não sustento este absurdo contínuo,

mas aqui me encolho neste marasmo

que arroga ser espaço e tempo de tudo.

 

Daqui saiu agora uma rapariga

sobrecarregada de meditações

e atrás dela um mestre

muito calado, ultimamente…

_melhor assim, dantes só enchia

balões de vaidade.

 

E nada me ocorre,

enquanto rabisco estas frases toscas.

 

Observo uma planta de folhas secas

num vaso de plástico, coitada,

ao lado dum rapaz a pensar em nada.

E quedo-me perplexa nesta corrente

de ar, por onde passam pernas

à procura dos próximos degraus,

das coisas que nascerão do nada.

 

Passa o tempo e eu fumando

este aborrecimento, mas já sinto

o êxtase do nada a expandir-se no Universo.

Ai, se eu fosse nada, abriria as minhas portas

para me expulsar de mim!

 

Não quero nada, contudo espanto-me

com quem diz nada querer,

quando afinal só o nada quer.

 

Insurjo-me, amiúde por nada...

mas agora só desejo: _que nada saia daqui!

E ainda me resta uma hora de esperança,

sem que nada aconteça em mim.

Nada obriga ninguém, nada atrai

e o nada fica sepultado em tudo.

 

Ainda ouço os zumbidos habituais

dos monólogos a dois,

continuo à espera que nada apareça

e fico aqui _porque eu sou nada, nada!

De contrário, partiria

para longe do longe e mais além,

onde se reúnem tudo e nada.

 

Ainda faltam dezassete minutos

e espero, espero, espero!...

o fim desta submissão.

Depois, irei sorver o delírio

que tudo liberta, com prazer

beberei todas as coisas belas

que desvanecem a rigidez

destas horas inúteis.

 

Já salivo, estou ansiosa

por romper este nada com tudo

que me espera dentro dos livros.

Mas, enquanto não chego ao rubro,

suporto mais uma torrente de cinza.

 

Irra, ainda faltam dez minutos!

 

Já vejo rubores no rostos

e tremores nas pernas apressadas.

Vejo uma mulher coberta

por um casaco a três quartos

tingido de rosa púrpura,

que com toda a pressa corre

a incendiar os caminhos de tudo.

 

Este papel pardo está cheio,

só já posso rabiscar duas linhas

nesta espera desesperada.

 

Sinto o sangue vermelho aflito,

sinto em mim uma mistura de nada

que me eleva e afunda no tempo.

 

 

14 Fev. 97

31 março 2013

Risos e lágrimas



Por vezes

não gosto de ser eu,

uma bússola sem eixo nem norte.

 

Tola e feliz

jamais serei francamente,

a maior alegria é efémero poente:

aparece brilhante,

mas logo escurece

e rebenta o dique.

 

Não quero marés de lágrimas e rio!

Rio na esperança de um dia rir seriamente,

rio sobrevoando as mais tristes pontes,

rio chorando os engenhos microcêntricos,

rio tudo antes de me esconder na torrente.

 

E choro lágrimas secas,

enquanto os amáveis surdos exultam

na mísera condição de loucos ridentes

de alegria amorosa e esquiva

aos pântanos tresloucados de amor.

 

Rio enlodada pra me esquecer dos lodos,

rio no centro do tempo que se esgota

_grito no estalo da inundação seca!

Encoberta por nuvens desfeitas em gargalhadas líquidas,

rio na esperança de torcer as águas

nos espelhos dos olhos das gentes

de risos maquinados na sombra da tristeza.

 

Não quero chorar e rio

à deriva num mar de alegrias

impregnadas de fel e grãos de esperança.

 

Pois, sem querer, ainda me encontro

na agonia das aves...

mas com elas sigo até Deus.

 

14 Fev. 97

23 fevereiro 2013

Deslizes duma caneta



Este mundinho está irremediavelmente

povoado de vermes.


É impossível esquecer-me,

   perdi a esperança.

Todavia, ainda reparo nos rostos.

Aquele ali agarra-se à rapariga

como quem não passa sem doces

   pra estar aqui.

Perto de mim, uma jovem alastra

discrição para um rapaz ver

enquanto, em tom de engate,

ele lhe conta gracinhas do seu bebé.

O bicho à minha frente embriaga-me

com olhar de camponês mediterrânico,

reflexos de terra, barba de milho...

Parece um rico homem, atento e volúvel

   como todos os outros.

Portanto, sempre arranja desculpas

_afinal, não passa dum homem!

Voltando ao casal:

embora ela o despreze,

   ele persegue-a

nem que seja pra que ela veja

como as Parcas lhe cortaram as asas.

Quanto a mim, não sei

por que me olha aquele ali...

se fugi nos ponteiros de Cronos e agora

só escorro na tinta de uma caneta baça.

Irra, que gente mais aborrecida e delicada!

Olham uns pròs outros como quem se esconde,

pedindo desculpa antes de abrirem a boca

   pra se desculparem por existirem.

Se nem comem açordas por medo dos odores,

por que raio penso eu neles?!...

Só pròs insultar por serem insectos

calados no ruído de si mesmos?

Não sei por que me preocupo ainda com coisas

que, no fim da viagem, se depositam rotas

nas portas dos seus próprios pesadelos.

Ah, se ao menos soubessem amar uma pedra!...

Lá bem no fundo, amam

os cascalhos que lhes soterram as barrigas.

Destemperada, sempre digo:

   _e mais nada!!

Apenas vêem bem os olhos cerrados,

pois a mandíbula que tritura as espinhas dos cavalos

(já cansados e abatidos nos combates da vida)

não pode dissipar a neblina que cai da falsidade.

Então que siga a dança da guerra,

   até à queda na cova!

Mas, se o mundo se fecha

e o tempo prossegue indiferente,

não tarda choverão pedras

que, sorrateiras, se escoarão

para recomeço das tumbas.

Afinal, nem esta caneta baça me esclarece.

Continuo sem saber o que faço aqui:

_parece-me que vivo

só porque ainda vos vejo as sombras.

Mas também sinto que nenhum rio de ácidos

lavará a imundice que vos atrofia os cérebros.


HCP, 14 Fev. 97

18 fevereiro 2013

Nesta esplêndida tarde, a inutilidade das palavras


Ó palavras infectadas, para que vos quero?!

Ó discursos ocos enfeitados de nada,

Inércia de estúpidas substâncias

Incolores, insípidas, inodoras...

Por que assombrais a beleza da terra?!


Ó senhores do mundo, onde enterrastes o tempo?!

Ó amantes de Narciso, quebrai o espelho!

E vós, Sátiros incrédulos, ide assustar o medo!

Que eu só quero vociferar sem eco

Contra o verso cerâmico carente de amor.


Mas sei-me inútil, pois

Nada explica os mortos mudos

E nenhum verbo acorda gestos humanos.


Nenhuma palavra honra os rios, oceanos, planícies,

Crateras e elevações que alicerçam a inocência.

A beleza vive longe dos espelhos do mundo,

Escondida entre os cadáveres efémeros

Da eternidade que a ninguém perturba.


Não quero arrufos nem versos,

Morrerei a voar só comigo,

Naturalmente, como um pássaro,

Perdida entre folhas num campo incógnito.


Mas como posso existir absolutamente só?...

_Existo para mim e assim sou tudo:

Aparente e invisível passo enquanto

Me misturo e desfaço na poeira do tempo.


Ainda alimento o destrambelhar das trovoadas:

Lanço raios sobre as casas, maus olhares às famílias...

Insulto as pessoas bem comportadas _e grito

Quando ouço a mudez ressonadora dos surdos!


Podem os imbecis castigar-me por desordem,

Mas, porque sou invisível, nenhum tormento,

Ninguém, me obrigará a seguir cortejos,

Nem mortos nem vivos!


Gosto de me encantar, descobrir nascentes,

Espantar o medo...

Também comunguei na missa de todos,

Mas não quero que me levem

Nem atrás nem adiante.


Não voltarei a fazer convites,

Quem goste de conservação, que fique

Bem guardado até ao dia em que mate

A fome a quem aprecie cadáveres

Crus ou cozidos, pouco importa.


12 Fev. 97

27 dezembro 2012

Um lençol quadriculado



Vejo um lençol quadriculado

Uma rede que se prende à gravidade

A tela que se enrola às grades da cama

A prisão que suspende a minha alma

 

Ao lado jazem umas botas de macho

Um par de couro em forma de pernas

Vazias do áspero corpo hirto

Obscenas de tanto magoar as pedras

 

Sobre mim pesa um inverno espesso

Incómoda atrofia de músculos e nervos

Horrenda represa do rio estagnado

Que se aquece na esperança que descansa

 

 

9 Fev. 97

Penas sob estrelas



A minha condenação está nos limites que não admito

¾ Uma pena tomba sobre cada palavra, cada grito!

Sentenças amesquinham-me a alma e a voz.

 

Sobre a minha cabeça tombam milhões de penas,

Mas acima delas brilham infinitas estrelas!...

¾ Jamais o Universo caberá numa balança.

 

 

9 Fev. 97

Desencornadura



Agarra bicho, macho,

as bandarilhas da valentia!

Espeta-as no ferro da tua dureza,

enterra-as bem no fundo

dessa cabeça tenebrosa!

 

Procura a alma do animal oculta,

arranca a besta! e devolve a criança

à arena do sentimento.

 

Arreda os ecos do pesadelo,

arma-te de coragem e perde

essa armadura _mais falsa

que a tua inocência enredada

nas raízes da cumplicidade!

 

Aventa a espada e chora!...

Amanhã renascerás

igual a todas as criaturas.

 

 

2 Fev. 97

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