23 fevereiro 2013

Deslizes duma caneta



Este mundinho está irremediavelmente

povoado de vermes.


É impossível esquecer-me,

   perdi a esperança.

Todavia, ainda reparo nos rostos.

Aquele ali agarra-se à rapariga

como quem não passa sem doces

   pra estar aqui.

Perto de mim, uma jovem alastra

discrição para um rapaz ver

enquanto, em tom de engate,

ele lhe conta gracinhas do seu bebé.

O bicho à minha frente embriaga-me

com olhar de camponês mediterrânico,

reflexos de terra, barba de milho...

Parece um rico homem, atento e volúvel

   como todos os outros.

Portanto, sempre arranja desculpas

_afinal, não passa dum homem!

Voltando ao casal:

embora ela o despreze,

   ele persegue-a

nem que seja pra que ela veja

como as Parcas lhe cortaram as asas.

Quanto a mim, não sei

por que me olha aquele ali...

se fugi nos ponteiros de Cronos e agora

só escorro na tinta de uma caneta baça.

Irra, que gente mais aborrecida e delicada!

Olham uns pròs outros como quem se esconde,

pedindo desculpa antes de abrirem a boca

   pra se desculparem por existirem.

Se nem comem açordas por medo dos odores,

por que raio penso eu neles?!...

Só pròs insultar por serem insectos

calados no ruído de si mesmos?

Não sei por que me preocupo ainda com coisas

que, no fim da viagem, se depositam rotas

nas portas dos seus próprios pesadelos.

Ah, se ao menos soubessem amar uma pedra!...

Lá bem no fundo, amam

os cascalhos que lhes soterram as barrigas.

Destemperada, sempre digo:

   _e mais nada!!

Apenas vêem bem os olhos cerrados,

pois a mandíbula que tritura as espinhas dos cavalos

(já cansados e abatidos nos combates da vida)

não pode dissipar a neblina que cai da falsidade.

Então que siga a dança da guerra,

   até à queda na cova!

Mas, se o mundo se fecha

e o tempo prossegue indiferente,

não tarda choverão pedras

que, sorrateiras, se escoarão

para recomeço das tumbas.

Afinal, nem esta caneta baça me esclarece.

Continuo sem saber o que faço aqui:

_parece-me que vivo

só porque ainda vos vejo as sombras.

Mas também sinto que nenhum rio de ácidos

lavará a imundice que vos atrofia os cérebros.


HCP, 14 Fev. 97

18 fevereiro 2013

Nesta esplêndida tarde, a inutilidade das palavras


Ó palavras infectadas, para que vos quero?!

Ó discursos ocos enfeitados de nada,

Inércia de estúpidas substâncias

Incolores, insípidas, inodoras...

Por que assombrais a beleza da terra?!


Ó senhores do mundo, onde enterrastes o tempo?!

Ó amantes de Narciso, quebrai o espelho!

E vós, Sátiros incrédulos, ide assustar o medo!

Que eu só quero vociferar sem eco

Contra o verso cerâmico carente de amor.


Mas sei-me inútil, pois

Nada explica os mortos mudos

E nenhum verbo acorda gestos humanos.


Nenhuma palavra honra os rios, oceanos, planícies,

Crateras e elevações que alicerçam a inocência.

A beleza vive longe dos espelhos do mundo,

Escondida entre os cadáveres efémeros

Da eternidade que a ninguém perturba.


Não quero arrufos nem versos,

Morrerei a voar só comigo,

Naturalmente, como um pássaro,

Perdida entre folhas num campo incógnito.


Mas como posso existir absolutamente só?...

_Existo para mim e assim sou tudo:

Aparente e invisível passo enquanto

Me misturo e desfaço na poeira do tempo.


Ainda alimento o destrambelhar das trovoadas:

Lanço raios sobre as casas, maus olhares às famílias...

Insulto as pessoas bem comportadas _e grito

Quando ouço a mudez ressonadora dos surdos!


Podem os imbecis castigar-me por desordem,

Mas, porque sou invisível, nenhum tormento,

Ninguém, me obrigará a seguir cortejos,

Nem mortos nem vivos!


Gosto de me encantar, descobrir nascentes,

Espantar o medo...

Também comunguei na missa de todos,

Mas não quero que me levem

Nem atrás nem adiante.


Não voltarei a fazer convites,

Quem goste de conservação, que fique

Bem guardado até ao dia em que mate

A fome a quem aprecie cadáveres

Crus ou cozidos, pouco importa.


12 Fev. 97

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