01 setembro 2009

Rap


Todos os homens

São míseros farrapos

Diabos prostrados

Aos pés do diabo

Recolho a manha

Teço a escolha

Envolta em lenha

Queimo a vida

Na vinha serrenha

Colho a erva

E fumo um charro

Da pleura escolho

Um bronquíolo de barro

Na lama do charco

Embebo o cenho

Na selha da história

Vomito, babo e ranho

Na merda do casco

Mergulho e escarro

Marinheiros atasco

No tacho de cobre

Descubro o escroque

Maldigo a lebre

E abraço o verme

Na tristeza morta

Subo a escarpa

Acima, acima

Espeto a pique

Comprimo a estrada

Arrebento o dique

Jorra a água

No jogo da vida

Em atalhos de picos

Ouriços rastejam

No lume de tojos

Ateio a raiva

Espumo fradiques

Que metem nojo

Cuspo e disparo

Contra a rima

À espera da prosa

Do padre de cima

Ó deus da graça

Culpai as paixões

Bendizei as desgraças

Contra os pregões

Da sina o sino

Badala no jornal

Mariposando pinos

E trouxas d’avental

Na cozinha do cardeal

Como Abéis e Cains

Caís às resmas

Nas grosas das velas

Barcas vermelhas

Rosas belas


8 Jan. 97

Poema ordinário de todos os tempos



Quem está na arena desta vez?


Os cães divertem-se à solta

Massacram a Terra homem a homem

Saqueadores arrebatam todo o pão

Enquanto os desarmados morrem de fome

No trono os insanos são venerados

Deuses provocam inveja aos diabos

Bestas cegas escarneiam tragédias

Amassam e levedam o demónio

No auge assiste-se à morte da vida

Sob a espada do ódio a Terra

Arde e chora


6 Jan. 97

Sobrevoando o céu silvestre

(homenagem a Walt Whitman)



Amanhã

vou ao rio

colher doces medronhos

para o meu namorado.

Amanhã

vou às carpas

e choverão labaredas nas águas.

Amanhã

sinceramente voarei

sobre a toalha vermelha

cruzada de ervas

entre as folhas eternas.

Amanhã

amá-lo-ei, naturalmente

embebido numa mistura de vinhos.

E na sua boca provarei

o sumo do amor, simples:

no beijo colherei o mel

e as gotas licorosas da primavera.

Amanhã

sobrevoaremos o campo de estrelas

e no verde perfumado de medronho

aspiraremos as fragrâncias do paraíso.

Amanhã

nos braços do céu silvestre

fluirão os néctares sanguíneos,

por inumeráveis estrelas-abelhas

jorrados nos favos da toalha.

E entrançados iremos

pelos jardins radiantes,

colhendo maçãs e delírios

nas bocas serpentinadas.

Amanhã

no rasto das colheitas do trigo

entraremos na eira do céu

para desfiar as searas

nas espigas ardentes do Verão.

Amanhã

nos caminhos de terra molhada,

à beira-rio

seguiremos o trilho dos juncos

além das veredas do leito,

em direcção ao Outono

sem o qual nada saberíamos,

embora amantes desta Natureza

mais pura que a água das almas

antes da invenção das máquinas.

Amanhã

amaremos todas as ervinhas

sobre a abismo da Terra onde

os nossos corpos caracóis tornados

serão calor etéreo, vida e morte

adoração de infernos e céus, repousados

no amor entre as estrelas do mar

e fenos e fardos, ceifados

pelas mãos da serenidade viçosa.

Amanhã

saída do ventre da vida, a Terra

conceberá montanhas de espanto

e, sem sátiras nem tragédias vãs,

enfim seremos criaturas divinas,

livres de preceitos e máculas,

abolidas as fálicas regras

contra a humanidade impostas

pelas religiões anti-panteístas.

Amanhã

voltará a ser Arte a Mãe do Amor

florescente na Beleza da Terra inculta,

simples e sublimemente imaculada,

terna e flamante como a Lua-cheia.

Então seremos um só corpo

liberto dos espinhos das falsas virtudes,

um corpo absoluto e revolucionário

jamais amesquinhado por falsos deuses.

Amanhã

beberemos o vinho mais doce

e a sabedoria brotará das rosas

em mãos-cheias de frescos aromas

e amores iluminados no prazer de existir

religiosamente como Natureza.

Amanhã

muito além das sombras tenebrosas

deste éden gotejante de ácidos prazeres,

de paixões funestas e morte sem fim,

prosseguiremos a nossa caminhada,

bebendo e compartilhando a vida

das novas folhagens irradiadas

por colossais lençóis de frenesins floridos,

enquanto na idolatria se humilha o amor

e a sinceridade das crianças.



Filhos da miséria na terra das ilusões:

_não espereis ver seguido esse exército vago!:

pelo contrário, sereis içados

daí, onde definhais perdidos

nos enredos dessa pegajosa prisão, pois

por entre oceanos de tristeza e dores

não florescerão adorações:

todos os corpos são vasos efémeros,

jamais será eterna a obediência

ao escárnio da insanidade dita humana.



Amanhã

vou ao rio.

Amá-lo-ei, naturalmente.



Dez. 96

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