30 agosto 2008

Quanto vale um gesto?


A que espécie pertence o movimento

de um corpo? Quem dirige os passos

da caminhada com relógio no pulso?

Que voz pronuncia as palavras iguais

saídas das bocas em uníssono abertas?

Que doçura estrangula as vidas

que cumprem a ordem oculta

nas coisas tidas por vividas?

Que me importa a mim

que os outros não vivam,

se eu próprio morri!?

Que me importa a luta despida,

se me oferecem a ilusão da vida!?

Não! nada importa

e a consciência é pedra que quebra.

Basta-me a certeza de ser

_uníssono! _ como um túmulo.

Para quê pensar,

se o pensamento contradiz o consenso?

Para quê reagir,

se o mais inane movimento

poderia arruinar o mundo?

Para quê interrogar,

se as respostas sempre seriam incómodas?

Eu estou sempre de acordo

_ ordenai, que executo!

A consciência foi ultrapassada pela fusão

_ está dito, repitam-no todos!!

Posso inventar tudo para explicar isto,

mas eu sou o vosso anátema,

não a escolha máxima.

Por vezes chamam-me democrata

_ mas sê-lo-ei?

Sooouu!!!

Grito! e, se preciso for, mato

o meu próprio filho louco,

corto a minha mão que peca!

entupo os canais subversivos

da verdade pura e universal!

Eu sou um arquétipo

_imponho-me o dever de sê-lo.

Não me envenenem com falsidades,

os meus anti-corpos são óptimos

_para o diabo a vossa sanidade!

Não adianta interrogarem-me

sequer quanto à origem dos meus actos:

_ ofusca, descaradamente,

o meu carácter inatacável.

Eu sou um justo!

Nunca ajo sem sopesar os outros

e a harmonia dos mundos. É ridículo

perguntarem-me o que é amar, pois

agindo naturalmente eu amo.

Que ninguém me peça provas:

_não, não me interessam!

E não quero sentir

nem pensar! ¾ magoam

e eu sou uma criatura humana.

_ Eu não sou marginal!

Não vedes que estou com todos?...

Simplesmente obedeço

e, sem dúvidas, entre os homens

estou acima de todas as bestas.

Eu sou ra-ci-o-nal

_ os animais são animais.

Eu não sou animal!

_ Então eu não sou homem!?...

Só a razão me governa a vontade

e as razões de fundo são os lemes da minha vida.

Vida?!... _Claro, vida!

Que bom estar vivo!... só por isso eu sou feliz.

Infelizes são os mortos!

Os mortos são infelizes?!...

_obviamente.

Eu não sou propriamente um rei, mas

por aí rasteja muita minhoca.

Quando me constipo fico radiante

_outros sofrem até morrer _que espectáculo!

Não... Não me confundais, eu sei tudo.

Que ninguém me desminta,

não quero ouvir, calai-vos!!

Ou então falai!... falai!...

eu só ouço o que já sei

_já nasci com tudo.

Fui criança...

e desenvolvi-me tão bem, tão bem!...

que me tornei o ser mais esplêndido.

Hoje sou um velho sábio,

já vivi muito, mas

quanto a saber, já nasci com tudo!

_E quanto à morte?

Perguntais se me assusta?!...

Claro que não!

naturalmente serei trasladado.

Sei que não passo duma insignificante peça

no maquinismo da vida

_mas que ninguém me chame máquina!

Não imagineis que sigo o rasto de outros

só por medo de arriscar caminho incerto:

sei que a verdade está nas evidências,

arriscado é seguir o rasto de outrem.

Ainda assim, arrisco tudo

porque sou o melhor do mundo

_ o mais esperto, o mais afoito!

Quem se atreve a desafiar-me

para uma guerra corpo a corpo?!

_ Quanto valerá este gesto?...

 

só com sentidos autorizados?

 

 

Janeiro de 92


22 agosto 2008

Descrição de um prazer

Acabei de saborear um trago de água tónica.

Apercebi-me de que era líquida, espumante, borbulhante, ácida, amarga, não como um limão porque não é leitosa, mas mais transparente, mais azeda e mais doce, muito expansiva, enquanto se mistura com a saliva e dança entre o palato e a língua.

Ao dividir-se em infinitas partículas dentro da minha boca, deixa de ser líquida.

Por fora, também é um pouco assim: se a despejo num copo, inicia um marulhar veloz e lento: nem uma gota de água cai no copo, é apenas espuma que se alastra e transborda.

A sua forma é como a daqueles líquenes que se propagam em sopros pelos corpos impolutos.

A cor é amarela, verde e castanha, com uma ponta de negro.

O seu grau de transparência sofre várias metamorfoses: começando por ser total dentro da garrafa fechada, torna-se opaca ao cair no copo, depois translúcida, e novamente transparente quando se acalma.

Se entra na minha boca, fica granulosa e dispersa, flutua e penetra em todos os vasos e mucosas, infiltra-se no istmo da garganta e daí escorrega até ao estômago, mas, nesse momento, já é um gás leve e espesso.

A água tónica é um bálsamo para a minha boca.

Quando penso nela, desejo-a... quero bebê-la! e sentir o Prazer Supremo ¾ entre o momento em que se expande e aquele em que cai, deixando o seu sabor indescritível incrustado no meu espírito.

 

 

1991

21 agosto 2008

A vitória das virtudes

É preciso rasgar o corpo,

redescobrir as entranhas,

revirar o sentimento,

para não ser hipnotizado

pelos deuses deste mundo!

 

Atraem-nos, acreditando

possuir-nos alma e corpo

e se deles nós fugirmos,

vem o exército de rendidos

e a derradeira sentença.


Depois, trocarão o nosso cérebro

por mioleira de asno morto.

Então, serenamente, celebraremos

a vitória das virtudes.

Ai Gertrudes, Gertrudes!

 

 

18/03/91


15 agosto 2008

Obsessão

Interminavelmente, desejo

o que não quero!

o furacão da lástima

que na escuridão procuro.

 

Ah, se ao menos nisto houvesse

um único fio de felicidade!...

E vai correndo a minha vida

 

anormal, pesada

na miséria da dúvida

que alimenta o medo:

 

penetrar o objecto,

apagar o corrupio,

viver como gente...

 

ou destruí-lo,

enfim abrindo

a irracionalidade

que sou eu?...

 


1987

14 agosto 2008

[Nada, nada...]

Nada, nada...

_ que quereis que vos diga?!

Ficai aí, reluzentes e estúpidos,

olhando pra mim.

Mas não vos fixeis por demais!:

pode ser que eu decida

lançar-vos fogo, vendavais,

comida, bolor, sangue de rapariga...

Ficai aí onde estais!

Porque, se vos aproximais

sulco -vos com o meu amor:

e ficais perdidos, pobres, tristes...

Pois descobrireis

que não vale a pena viver entre cordéis

à espera da mão divina

que vos abra o coração

e exponha o ventrículo da coragem

de ser pequenino.

 

 

1 Abril 87

Defronte do espelho

Defronte do espelho um homem

Imagem real e imagem virtual

Dentro do espelho a figura nua

Vestida do lado de fora

 

Sobre degraus o homem sobe

O corpo coberto por uma capa

Ao cimo da escada uma porta

Do lado de lá outro espelho

Com a imagem nua do homem defronte

Subindo a escada à procura da sua figura

 

Salas vazias e portas abertas

Numa sucessão infinita de rectas

O homem percorre o espaço

No fundo interminável um espelho

Reflecte a imagem da loucura

 

 

1987


13 agosto 2008

Libido nocturnal

Abre-te, noite!

abre-te ao néctar do amor.

Deixa a imaginação fluir

pelo rio dos corpos afogados

na alegria deliciosa do prazer.

 

Enquanto o dia dorme

a embriaguez é infinita;

a natureza brota,

cai o véu da culpa,

a verdade grita!!...

e expande-se em luzes mil.

 

Os lábios procuram a alma da terra

e sorvem o céu

na água caída da tua boca.

O sonho invade e derruba

o soberano abismo do castelo da razão.

 

A música emerge das carícias,

penetra no ventre da terra,

atrai o fogo à pele da vida

que se desmancha e dança

na loucura do prazer etéreo...

 

A inteligência erótica

saboreia o espírito da noite

no vinho da sabedoria

do feiticeiro da libido.

 

O medo é açoitado

pelas mãos da coragem,

enquanto a ousadia abraça

o infinito imprevisto.

 

E quando a Lua se mostra...

os fios da noite entrelaçam-se

no ritual do delírio:

_ ondulam em torno da Terra

e assistem ao parto da magia.

 

 

1987

12 agosto 2008

Mão-árvore

 Mão-árvore,

agitas-te quanto podes:

revolves... revolves... revolves...

a terra em volta das raízes.

Mão aberta,

tronco vermelho de desejo,

dedos longos... longos... longos...

ramos espreguiçados mais... e mais...

aspirando o além-espaço.

Mas mão-árvore!...

Raízes-cérebro!!

A árvore seca se as raízes cortarem,

a mão murcha se o cérebro morrer,

mas mão-árvore não quer ficar presa.

Mão-árvore

hoje olhou para baixo

e viu-se presa à terra

_ amarrada até pelo ar _

e a amargura secou os seus lábios,

os seus olhos entristeceram,

o corpo inteiro chorou.

Isto passou-se num dia de trovoada

e só a sua alma sentiu a condenação

a prisão perpétua.

Mas não se afogou a mão-árvore,

continua procurando... procurando...

procurando... talvez destruir-se,

pois o seu maior desejo é voar

sem algemas nas raízes.

 

Explicação da mão-árvore

Nascem em terra vermelha e de nove em nove anos choram debaixo do Sol abrasador de Agosto. Porque os homens, sem dó nem piedade, arrancam-lhes a pele com um machado. Árvores que são corpos em carne viva e ao mesmo tempo mãos presas à terra (cinco ramos como cinco dedos). É impossível um alentejano não as adorar.

E eu sou um sobreiro preso à terra que procura libertar-se das algemas raízes, que quer talvez destruir-se, pois o seu maior desejo é voar, conhecer e amar tudo.

Presa à terra, e também com claustrofobia da atmosfera, nem o desejo que retorce os ramos e os troncos vermelhos impõe limites à conveniência da razão. A mão-árvore não se afoga em lágrimas, apesar da amargura visível nos lábios, da infinita tristeza nos olhos, de toda a agitação e procura do êxtase no além-espaço. A terra impõe-me o florescimento da rude inteligência. Por isso continuo a equilibrar-me, qual funâmbulo, num arame incerto. Protegida, contudo, pelas tais raízes que me limitam os voos (mas não os sonhos). Com os ramos espreguiçando-se, sempre mais e mais, a consciência e a vontade de chegar aonde nada seja apenas nada e tudo exista como realidade, sem os abismos desta vida que nos nossos dias replica o prolongamento das regras convenientes, será que um dia acharei o meu lugar mágico?

 

Maio de 1981

[Arabescos, manchas]


Arabescos, manchas,

desencanto, esperança...

todos se confundem

e me confundem. Mas

num deslize de olhos

pelas formas revoltas,

vejo

em cada uma o corpo

amalgamado do tempo.

E transfiguro-me,

e enlouqueço,

e perdida fico

nesta confusão que desnorteia

_preciso sair daqui!,

mas lá fora nada encontro.

 

 

Fev. 80 / Fev. 81

(pintura a verde-80; repintada a negro-81)

11 agosto 2008

Ilha

Atmosfera de silêncio e música,

ilha negra e clara, perfumada

de sorrisos, líquenes e bichos

felizes de árvore em árvore.

E as raparigas, belas como as flores,

entoam cânticos lunares:

divinas vozes que plos ares voam,

pulverizando a ilha

de pétalas musicais.

 

 

Janeiro de 1981

(pintura azul, verde, dourado, branco e preto)


Sonho

Numa clareira da noite

um demónio se agita,

expulsando a peste negra

e a razão maldita.

 

O seu rosto apaga-se

e desce para o nada,

arrastando a máscara

pela madrugada.

 

Nos ares ecoam aplausos

de semideuses ateus,

que os demónios transformam

num imenso deus.

 

 

Jan. 81

(pintura a branco, vermelho, azul e preto)

[No fundo do mar, as borboletas]

No fundo do mar, as borboletas

bailam, nas asas enlaçando estrelas.

No fogo da terra, as algas

atraem toupeiras e os homens

seduzem sereias _ para prendê-las

em conchas de ostra,

corais e pérolas _,

enquanto um pássaro negro

de vigia à gruta da noite,

por detrás do Sol ilumina

a terra e o mar

dos poetas.

 

 

Agosto de 1980

(pintura)


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